Portugal – Até 2021 vai ser possível ir a um notário e não precisar de papéis

(Gonçalo Villaverde / Global Imagens)

Jorge Silva acaba de ser eleito para a liderança da Ordem dos Notários com a promessa de uma revolução digital. Fique a saber as principais medidas.

Em entrevista ao Dinheiro Vivo, Jorge Silva revela ainda que vai propor ao governo uma alteração ao regime fiscal e contributivo dos notários e das regras de atribuição das licenças dos cartórios notariais.

Algum dia vai ser possível um cidadão ir ao notário e não lhe pedirem nenhum papel?

Sim. O nosso objetivo, se o governo colaborar connosco, é que o cidadão a partir do momento em que estiver a usar a Chave Móvel digital [meio de autenticação dos cidadãos em portais e sítios da administração pública na internet], desde que leve o seu telemóvel ou smartphone, pode fazer qualquer tipo de contratos. Não lhe digo que é para 2018, mas digo que será durante o meu mandato [até 2021].

Foi eleito com a promessa de uma revolução digital nos notários. Quais as medidas mais importantes que vai adotar?

Esta revolução é a possibilidade do notário assumir um papel de confiança no mundo digital, para que os cidadãos e as empresas possam realizar negócios jurídicos de forma absolutamente desmaterializada, com a mesma segurança jurídica que hoje em dia temos em papel. Isso terá uma série de vantagens ao nível de custos para cidadãos e empresas e irá possibilitar que o investimento estrangeiro em Portugal ocorra de uma forma muito mais fluida e possam ser assinados em tempo real em locais diferentes. Essa foi a grande proposta que fizemos. Será a Ordem a implementar as ferramentas informáticas e depois pedirá apenas ao poder político, quanto muito, que crie as portarias regulamentares para o desenvolvimento deste projeto.

Vamos criar uma escritura eletrónica através de uma plataforma que será detida pela Ordem que vai permitir que um comprador que possa estar, por exemplo, no Funchal, e um vendedor aqui em Lisboa, acordarem um preço à distância no objeto que pretendem vender. Pode ser uma casa, um carro, cada um desloca-se ao notário onde estão situados e realizam em tempo real a escritura de compra e venda, um contrato de empréstimo ou qualquer negócio jurídico de forma totalmente segura. Vamos ter uma procuração eletrónica notarial para podermos ser mandatados em tempo real. Vamos dar um acesso aos nossos arquivos, onde temos milhões de documentos guardados. Vamos acabar com o procedimento burocrático de as pessoas terem de ir ao local pedir uma certidão, mais um carimbo ou uma cópia.

Vai ser um Simplex dentro da ordem?

Mais do que um Simplex dentro da ordem vai ser um Simplex dentro dos cartórios notariais. Neste momento, somos praticamente 420 e seremos brevemente mais de 500. E estamos espalhados pelo país e o que queremos fazer é que cada um destes balcões possa ser um balcão de prestação de serviços desmaterializado. Será tudo custeado pelos notários. Não colocamos de parte a possibilidade de candidatura a programas europeus. Claro que isto é um processo moroso, mas em 2018 já vamos avançar já com a plataforma informática que servirá de base a todos os projetos. E além disso, vamos propor depois ao governo a possibilidade de prestarmos mais serviços do que temos agora.

Que outros serviços?

Sempre que um documento tem de ir para o estrangeiro, e hoje em dia vão muitos, é necessário ser apostilhado e tem de se ir a um tribunal ou à PGR para colocar mais carimbo. Nós queremos que essa apostilha seja eletrónica e possa ser colocada nos cartórios notariais. E o cidadão quando vai, por exemplo, fazer uma procuração para ir para um país estrangeiro não tenha que ir a mais um local e possa imediatamente colocar a apostilha no cartório notarial. Vamos criar ainda a possibilidade de depósito eletrónico de qualquer tipo de documento com valor legal. Sempre que alguém quiser fazer o arquivo de um documento, seja um CV, um contrato, nós iremos arquivá-lo e depois disponibilizá-lo através de um código de certidão permanente. Queremos ainda que o governo pense na possibilidade de, nos contratos de compra e venda de bens imóveis, também desmaterializar os processos de crédito bancário. Queremos criar a possibilidade de, por exemplo, o representante dos bancos poder assinar a partir da sua sede, e eventualmente não ter que se deslocar aos cartórios. O cidadão poderá escolher o cartório mais perto para realizar a escritura de compra e venda.

Quando é que isso será uma realidade?

Se o governo colaborar connosco com uma portaria regulamentar será ainda em 2018. A Ordem irá apresentar ao governo uma proposta de portaria regulamentar até ao final do primeiro semestre, para termos a escritura eletrónica até ao final do ano em vigor.

Durante a campanha prometeu também que os notários iriam ficar todos em rede.

Sim. Todos os notários estarão ligados em rede até ao final do primeiro semestre de 2018. O caderno de encargos estará pronto até ao final do primeiro trimestre e a ideia será implementar a primeira parte da plataforma informática no segundo trimestre e partir daí, tudo o que não seja, necessário uma intervenção legislativa do governo, nós começaremos a disponibilizar serviços. Dependem apenas do regulamento europeu sobre documentos eletrónicos (EIDAS). A plataforma será baseada neste regulamento e na legislação sobre certificação digital. No último trimestre, caso a vertente legislativa esteja cá fora, iremos avançar com a escritura eletrónica.

E como é que os cidadãos vão assinar os documentos?

Será com o cartão do cidadão, que tem um certificado qualificado, o que permite uma assinatura com valor legal. O governo está a implementar neste momento o projeto da Chave Móvel Digital que vai facilitar a utilização do certificado digital qualificado do cartão. Quanto às empresas, o processo será relativamente o mesmo.

E ao nível da segurança dos documentos. Que garantias dá em relação à plataforma?

Ao nível da cibersegurança os cidadãos e os clientes podem estar perfeitamente tranquilos. A plataforma vai ser criada de acordo com as melhores práticas. Os dados vão estar cifrados, teremos várias redundâncias e a segurança jurídica será garantida através de certificados qualificados. Do ponto de vista dos parceiros tecnológicos, são parceiros de referência do mercado e que oferecem todas as garantias. Mas vamos fazer precisamente um conjunto de testes com as empresas para deteção de eventuais vulnerabilidades, e utilizar tecnologia já comprovada.

Mas não há nenhum sistema 100% seguro.

A primeira regra da cibersegurança é que não existe nenhum sistema que seja infalível. Mas o que podemos garantir é que, existindo uma quebra de segurança, não existe perda de dados nem o acesso aos dados.

Os notários têm sido muito críticos em relação a várias medidas que foram anunciadas ao longo dos anos em matéria de Simplex, acusando nomeadamente o Estado de concorrencial desleal.

A nossa crítica para a opinião pública foi, muitas vezes, um pouco confusa. Os notários estão completamente de acordo em relação a tudo o que é simplificação. O que criticamos no Simplex são duas coisas: uma é uma certa facilitação de alguns negócios jurídicos, nomeadamente, a venda de quotas da empresa, que continua a ser feita sem qualquer tipo de controlo, e que tem originado bastantes problemas. O Estado permite que atos de natureza jurídica sejam praticados por pessoas não licenciadas em Direito, o que é inconcebível e não faz sentido nenhum. Outra coisa é a concorrência desleal do Estado, que criou balcões que prestam o mesmo serviço dos notários. Só que os notários para poderem praticar o mesmo preço que os balcões públicos são obrigados a absorver no seu próprio preço, o IVA que os balcões do Estado não cobram. Por outro lado, o Estado abandonou o interior e as ilhas e são os notários nestas localidades que fazem a mediação com o cidadão. Não basta anunciar o Simplex.

O seu antecessor disse numa entrevista em junho que tem havido um esvaziamento da função notarial desde a privatização em 2004. Concorda?

Não considero que tenha havido um esvaziamento mas nestes anos sofremos com a incompreensão de alguns governos que confundiram os processos de simplificação da vida dos cidadãos com a necessidade de criar novas entidades para prestar os mesmos serviços que nós prestamos. Nós continuamos a prestar os mesmos serviços que sempre prestámos. Na prática, não se pode dizer que nos esvaziaram competências. Aliás, em bom rigor, até prestamos mais serviços do que prestávamos. O grande problema é a concorrência desleal do Estado. Isso afeta-nos bastante. E afeta muito mais os notários do interior, porque têm muito menos serviços devido a desertificação e ao desinvestimento do próprio Estado. O que aconteceu foi que nós deixamos de ter da parte do Estado o apoio na disponibilização de novos serviços e fomos um pouco abandonados na prestação de novos serviços. A única competência nova que temos desde a privatização tem a ver com os inventários, que nos foram entregues um pouco em cima do joelho. Nos inventários estamos a falar de partilhas litigiosas por divórcio ou óbito, em que a plataforma informática foi paga pelos notários, que continuam sem acesso às bases de dados para poder tramitar os processos de inventário. Continuam sem protocolo dos CTT para enviar as cartas. Continuamos a suportar as cartas esperando que depois o Estado nos pague. Todo o investimento é dos notários e o Estado continua sem querer colaborar connosco de uma forma mais efetiva.

E isso vai mudar no seu mandato?

Acho que sim. Sou um otimista por natureza como o primeiro-ministro e acho que neste momento estão criadas as condições para o governo entender que chegou a altura de colaborar com os notários portugueses.

A desmaterialização de documentos não poderá pôr em risco a profissão do notário?

Há muitas profissões que estão condenadas a acabar com a evolução tecnológica. É uma pergunta interessante. Não há nenhum tipo de serviço ou de profissão em que se possa dizer que seja insubstituível. O que existem são funções que neste momento estão atribuídas a determinadas a profissões, neste caso aos notários, que acabam por ser insubstituíveis. Pode o Estado criar mais uma série de entidades que nos substituam completamente? Pode mas isso pode criar para qualquer uma. Não há nenhuma profissão que conheça em que o Estado não possa criar uma forma de a substituir. Mas do ponto de vista da função existirá sempre lugar para quem presta um serviço e se afigure com um determinado estatuto de imparcialidade. E essa é que a nossa grande diferença. Se o Estado pode criar amanhã uma outra profissão qualquer e chamar-lhe notário2.0 para nos substituir. Pode mas não será a mesma coisa. Se os notários se continuarem a afirmar como uma profissão que tem um determinado tipo de funções e assentes na imparcialidade, que é isso que faz com que os cidadãos confiem em nós, tenho a certeza de que o notariado vai continuar a existir independentemente dos negócios serem feitos no mundo físico ou digital. Se começarmos a desvirtuar a profissão e a pensar que se calhar que amanhã não somos notários mas notários/advogados ou empresários, de certeza que a profissão acabará porque efetivamente deixamos de ter um núcleo de funções definidas.

Que balanço faz da privatização?

Para quem se lembra como era um cartório notarial antes da privatização e quem vai a um cartório hoje, e mesmo com cariação de balcões públicos, a privatização do notariado foi uma boa medida. Porque passámos de instalações decrépitas, sem sistemas informáticos, com agendas de marcação de mais de 90 dias, para escrituras feitas praticamente em 24 horas, com boas instalações, em que as pessoas são bem atendidas, com funcionários com formação, licenciados em Direito, com a possibilidade de realização de negócios muito mais fluida e no aspeto que realmente interessa, na qualidade da prestação de serviços aos cidadãos e empresas, não tenho duvida nenhuma que a privatização da gestão dos cartórios foi um sucesso. Agora se o caminho da privatização foi aquele que nos queríamos. Não foi. O caminho que queríamos era que efetivamente fosse possível os cartórios não serem o patinho feio do Simplex mas serem os principais protagonistas.

Durante a crise não houve notícias de notários irem à falência nem de despedimentos.

Durante a crise muitos cartórios acabaram por persistir, porque mesmo aqueles que não tinham capacidade financeira e tiveram quebras de faturação, mantiveram os cartórios abertos. Quando as empresas estavam a fechar e muitos cidadãos a emigrar houve muitos notários que prestaram serviços sem receber para ajudar os seus clientes que estavam numa situação verdadeiramente miserável. Havia alguns notários que ainda tinham vínculo ao Estado e que regressaram a função Pública. Mas foram poucos os cartórios que tiveram de fechar devido à crise, porque a maioria aguentou-se precisamente com base no serviço publico.

Quantos fecharam?

Quatro ou cinco. Uma parte foi devido à crise, mas outra parte foi uma opção profissional. Não tivemos nenhum caso trágico provocado pela crise. Houve despedimentos como em todas as profissões mas não sei dizer quantos. Houve cartórios que tiveram de diminuir o número de trabalhadores, mas isso é normal em qualquer tipo de atividade. Mas agora já estamos numa fase de efetivo crescimento.

Em que se baseia para dizer isso?

Estatisticamente temos um crescimento do número de atos notariais. Em termos de faturação parece-nos que este ano já será um ano positivo. A questão é que estamos numa fase de crescimento muito baseado no crescimento da economia e agora o que é necessário é estabilizar os cartórios e criar as condições para investirem a longo prazo. Uma das grandes dificuldades que temos é do ponto de vista fiscal. Somos considerados profissionais liberais e não podemos constituir empresas e do ponto de vista da segurança social somos tratados como qualquer pessoa que recorra a contabilidade organizada. Somos bastante penalizados do ponto de vista dos pagamentos a SS e do IRS. Nós não conseguimos fazer uma planificação do investimento a três anos, como qualquer empresa faz.

O regime fiscal e contributivo deveria mudar?

Sim. Os notários devem ter regras justas, como qualquer empresa tem para poderem fazer uma gestão que favoreça o notário e os próprios cidadãos. O que faria sentido era que o notário pudesse planear investimentos e realizá-lo ao longo de três anos como faz qualquer empresa. Não faz sentido nenhum um notário ser obrigado a todos os anos ser penalizado como se tivesse lucro, coisa em que nenhuma empresa acontece. O que queremos é ter um regime fiscal similar a de uma empresa e pagar uma SS e impostos justos. O que nos queremos e vamos propor ao governo, que melhorem as regras das sociedades de notários, que criem a possibilidade de uma sociedade de natureza unipessoal, para os notários que quiserem manter-se a título individual.

Acha que o legislador vai acolher a vossa pretensão?

Sempre que vou à AR nunca houve nenhum grupo parlamentar que me dissesse que as nossas pretensões eram injustas. Pelo contrário. Em relação ao mapa notarial, o que está previsto são 543.

Neste momento, quantos estão a funcionar?

Neste momento 419.

Vamos ter mais notários nos próximos anos?

Sim vamos ter mais notários. Neste momento já vários notários concluíram o seu estágio, passaram o exame no último concurso. Queremos fazer uma reforma absoluta dos concursos de atribuição de licenças. Uma reforma será através da criação de um curso anual e universal que permitirá que os notários concorram todos os anos à totalidade das licenças de forma a tornar mais ágil o processo de preenchimento das licenças. Tem sido um problema crónico desde a privatização. Efetivamente não se conseguem fazer concursos rápidos e expeditos. Nós vamos informatizar a totalidade dos procedimentos para a abertura do concurso. Vamos trabalhar com o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) que será o nosso parceiro na implementação destas novas ferramentas. Temos a certeza de que o Ministério da Justiça vai estar interessado. E isso vai permitir a criação e a abertura de mais cartórios notariais em todo o país. Mas defendemos a revisão do mapa notarial.

Em que sentido?

No sentido em que é possível ter. Neste momento, as licenças são atribuídas por concelho, que pode ter várias licenças. O que acontece é que há concelhos com um número de habitantes tão reduzido que não têm o número mínimo de atos que suportam um cartório. O que se pode fazer, já existe na lei mas de uma forma muito burocrática, é a possibilidade de uma licença poder abranger vários concelhos, mantendo-se extensões abertas nesses concelhos, não fechando balcões. Não prejudica em nada os cidadãos, pelo contrário. E vai permitir ter mais balcões no país todo. É inexplicável que quase em 2018 isto ainda não está em vigor.

Dinheiro Vivo