Falhas da produção de provas digitais

Por Victor Hugo Pereira Gonçalves

O sistema de provas instituído pelo novo Código de Processo Civil (CPC), de 2015, é um assunto pouco estudado. Também o foi nos mais de 40 anos de vigência de seu antecessor, de 1973, quando o aspecto probatório era relegado e reduzido a convenções sociais e históricas, que traduziam um “senso comum” que satisfazia ao sistema procedimental do processo em papel. Contudo, com o advento do procedimento eletrônico, a partir de 2007, tal postura descolada do cientificismo tecnológico e dos aspectos axiológicos do sistema de provas que o digital exige para se construir a verdade dos autos pode produzir decisões judiciais totalmente dissonantes da realidade. No antigo processo judicial em papel, eram de conhecimento comum as tecnologias de reconhecimento de assinatura, falsificação de documentos, adulteração, enfim, era possível inferir probabilidades de má formação da prova juntada aos autos. Contudo, tal inferência, em tempos de tecnologias da informação e comunicação, torna-se impossível sem um aparato tecnológico e procedimental para a verificação da confiabilidade dos documentos digitais e da veracidade dos conteúdos neles inseridos.

E não há nenhuma infraestrutura jurídica ou tecnológica montada ou preparada para desenvolver e partilhar estes conhecimentos em toda a cadeia de atores (magistrados, cartorários e advogados), auxiliares (peritos) e usuários (cidadãos). É grande a urgência em se discutir a formação das provas digitais dentro do novo contexto imposto pelo Código de Processo Civil e pelas tecnologias de informação e comunicação. Faltam também ao Poder Judiciário procedimentos instituídos sobre como recolher, guardar, manter e produzir provas digitais ou uma estrutura de cadeia de custódia transparente de recolhimento e guarda de dispositivos informáticos. Não raro, vê-se peritos, policiais e cartorários carregando-os para suas casas sem o devido cuidado com a preservação das provas e o cumprimento da inviolabilidade dos equipamentos.

No exercício de suas funções, peritos não determinam as ferramentas que vão utilizar, não bloqueiam a comunicação da entrada USB, não determinam e divulgam as técnicas de espelhamento do HD necessárias para o desenvolvimento da investigação pericial. São banais situações que inviabilizam a integridade jurídica e técnica da prova, já que eliminam a garantia de que houve adulteração ou violação. Tão preocupante quanto a produção de provas digitais é a forma como esses documentos digitais são obtidos pelas autoridades. O Brasil é o país que mais faz interceptações de dados no mundo. Em 2015, as operadoras receberam 46 mil solicitações judiciais do gênero, ou 1,06 por minuto. Curiosamente, parte dos pedidos não foi atendida pelas companhias porque não estava de acordo com a Lei de Interceptação de Comunicações Telefônicas. Salta aos olhos a concessão ilegal de liminares. Como o sistema judiciário pode produzir provas de forma ilegal? Quem controla este enxame de decisões liminares sem quaisquer garantias constitucionais? O volume de pedidos evidencia um estado de vigilância constante que não cria e não tem controles instituídos para evitar a destruição das garantias constitucionais dos cidadãos.

A lei determina que não será concedida a liminar para a interceptação de dados quando “não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal”, se a “a prova puder ser feita por outros meios disponíveis” ou o se o “fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção”, conforme o artigo 2º da Lei de Interceptação de Comunicações Eletrônicas. Surgem dúvidas sobre a forma como as decisões são construídas, sem seguir um critério objetivo legal. Quais os critérios para definir a razoabilidade de indícios? A investigação deve ser construída de tal forma que a interceptação de dados seja a última peça do quebra-cabeça persecutório. Esse, contudo, não é o procedimento habitual. Exemplo disso é a briga hercúlea que travam as autoridades policiais e o Ministério Público pela quebra da criptografia e do sigilo de comunicações via Whatsapp. Para tal, justificativa comum é que as investigações criminais não caminharão sem interceptações de dados ou desbloqueio criptográfico. Oras, se uma investigação fia-se somente numa interceptação para prender supostos criminosos, ela não possui condições de seguir em frente, já que não pode sequer requerer a interceptação.

A interceptação de dados tem sido um meio para que o Estado não investigue adequadamente e se abstenha de investir em material e pessoal. Serve a um vigilantismo que se dá sem quaisquer restrições ou limites, em que polícia e Ministério Público contam com a condescendência de juízes que focam a análise da repercussão do fato em detrimento de investigações que se baseiem em princípios constitucionais e nos direitos humanos. Esse modus operandi somado à falta de procedimentos, capacidade técnica e infraestrutura da Justiça na guarda e produção de provas digitais colocam em risco o estado de direito.

Victor Hugo Pereira Gonçalves é sócio do escritório Pereira Gonçalves Advogados Associados, atua há 16 anos como especialista em direito digital

Valor Econômico