Datilografado e rubricado? O inquérito precisa acompanhar a revolução digital

Por Leonardo Marcondes Machado

O inquérito policial é marcado pela forma documental. O que significa a necessidade de registro fiel dos atos praticados desde o início até a conclusão do procedimento de investigação, tudo organizado, em regra, num só instrumento formal, o qual deve apresentar relação sequencial e numerada das peças (ou eventos) para facilitação do acesso à informação, bem como garantia da sua higidez procedimental.

O CPP de 1940, em seu artigo 9º, refere-se à forma escrita no inquérito policial, contudo, a reforma processual de 2008 permitiu, havendo aparato tecnológico, a adoção de mecanismos de gravação, inclusive audiovisual, na esfera judicial, com o fito de “obter maior fidelidade das informações” (artigo 405, parágrafo 1º do CPP); o que, sem dúvida alguma, pode (ou melhor: deve!) ser aplicado, seja por analogia, seja de modo subsidiário, seja por interpretação progressiva[1] à etapa pré-processual (artigo 3º do CPP)[2].

Por óbvio, quando o artigo 9º do CPP estabeleceu que “todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”, assim o fez com o objetivo de garantir a regularidade documental do procedimento administrativo de investigação considerando o instrumento de formalização possível à época.

Tratava-se de garantir a integridade quanto ao conteúdo dos elementos de investigação produzidos, bem como o controle e a responsabilidade da autoridade presidente do feito pelos atos de instrução preliminar do caso[3]. Daí a previsão quanto aos autos físicos com informações escritas à mão ou datilografadas e certificação da autoridade por intermédio de sua rubrica (assinatura abreviada).

Não se poderia esperar nada diferente da primeira metade do século passado. Hoje, contudo, em face das transformações experimentadas na comunicação, principalmente depois da revolução digital, a forma escrita deve ser revista no procedimento de investigação preliminar.

Vale destacar que muitas delegacias têm se atualizado para incluir o sistema audiovisual em seus procedimentos de investigação, bem como transformar os autos de papel em documentos eletrônicos (Inquérito Policial Eletrônico/IP-e) na esteira do movimento de informatização do processo judicial (Lei 11.419/2006 e Resolução 185/2013 do CNJ)[4]. Uma renovação absolutamente imprescindível ao aprimoramento do sistema de investigação preliminar no processo penal brasileiro, cujos ganhos, aliás, extrapolam os limites da Justiça criminal. Citem-se, por exemplo, os efeitos positivos no campo da economia pública e da consciência ambiental pela racionalização do uso do papel.

Quanto à dimensão estrita da persecução criminal, a formalização dos atos investigatórios pelos processos de captação e registro de som e/ou imagem constitui medida necessária à maior integridade do conteúdo informativo do inquérito policial. Justo porque evita distorções quanto à fala do sujeito sob inquirição, o que bastante comum na estrutura comunicativa do sistema presidencialista, marcada por uma cadeia sucessiva de transmissão (ou transformação?) da informação (relato oral do inquirido — reprodução verbal do delegado — transcrição escrita pelo escrivão). Esse modelo de “telefone sem fio” em que a resposta verbal do sujeito inquirido (vítima, testemunha ou suspeito) à autoridade policial é (re)transmitida oralmente a um terceiro para posterior registro final por escrito da oitiva traz na maioria das vezes sérios problemas de documentação da informação. Não são poucos os casos em que o conteúdo registrado no termo de oitiva nada tem a ver com aquilo que efetivamente foi dito (ou não dito) pelo sujeito inquirido ao presidente da investigação. De fato, um sério problema de ruído, ou melhor, distorção na comunicação, com prejuízo direto à apuração da notícia crime e, por conseqüência, ao processo penal.

Enfim, não há dúvidas de que a forma documental do inquérito policial precisa ser revista diante das novas tecnologias. Inconcebível que, em face de toda a revolução digital, permaneça ainda vinculada ao modelo escrito ou datilografo como prevê o CPP de 1941. Frise-se, em tempo, que a razão não é meramente utilitária, mas de inegável cunho garantista, a fim de conferir maior controle quanto à regularidade do procedimento de investigação preliminar.


[1] “A nosso juízo, apesar de o CPP não fazer menção à gravação audiovisual de diligências realizadas no curso do inquérito policial, deve-se atentar para a data em que o referido Codex entrou em vigor (1º de janeiro de 1942). Destarte, seja por força de uma interpretação progressiva, seja por conta de uma aplicação subsidiária do art. 405, § 1º, do CPP, há de se admitir a utilização desses novos meios tecnológicos no curso do inquérito. Portanto, sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, do indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 02. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p. 114). Na mesma linha: TÁVORA, Nestor; ALENCAR Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8 ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2013, p. 103.
[2] “A lei processual conferiu maior agilidade à colheita de provas, possibilitando o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, consignando que, no registro por meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem necessidade de transcrição, respeitando desta forma os princípios da celeridade, duração razoável do processo e oralidade” (STJ – Sexta Turma – HC 247.912/RS – Rel. Min. Nefi Cordeiro – j. em 03.06.2014 – DJe de 20.06.2014).
[3] Vejam os comentários de Ary Azevedo Franco em meados da década de 40 do século passado: “Disposição de cautela, para evitar que se procedam a atos no inquérito sem que os reduzam a escrito, pois, quantas vezes, deparam-se em autos de inquérito diligências sobre as quais não há menor notícia de que foram elas determinadas pela autoridade que, pelo menos, de direito, presidiu o inquérito, nem se dão as razões que levaram a autoridade a tomá-las” (FRANCO, Ary Azevedo. Código de Processo Penal. v. 1. 02 ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto, 1944, p. 59).
[4] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; ORTIZ, Luiz Fernando Zambrana. Inquérito Policial Eletrônico: Tecnologia, Garantismo e Eficiência na Investigação Criminal. In: GIORDANI, Manoel Francisco de Barros da Motta Peixoto; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de (Org.). Estudos Contemporâneos de Polícia Judiciária. 1. ed. São Paulo: LTR, 2018, p. 83-96.

 é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2018