Como faremos Justiça?

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Para Federico Ast, o blockchain vai transformar o trabalho no Judiciário e na advocacia

“Se um advogado do século 19 viesse em uma máquina do tempo para o século 21 e quisesse trabalhar hoje, não perceberia grandes diferenças. Mas esse mesmo advogado não entenderia nada do que se passa fora das cortes.” Quem me disse isso foi Javier Carbajo, secretário-geral da Câmara Federal de Cassação Penal, em seu escritório em Comodoro Py, onde funciona a Justiça Federal argentina. Sobre a mesa repousa um globo girador de bolinhas para sorteio, de uns 50 ou 60 anos. Era usado para sortear a distribuição de casos entre juízes e ainda entra em ação, às vezes, quando falha o software que o substituiu. Ao nosso redor há grossos volumes de livros de leis.

Como disse o investidor Marc Andreessen, o software está comendo o mundo. A revolução digital transforma todos os setores. As maiores empresas de informação (Google), transporte (Uber), alojamento (Airbnb) e mídia (Facebook) desenvolvem software. Serviços legais são exceção — até agora. Uma série de novas tecnologias, como blockchain e inteligência artificial (I.A.), irrompem no mundo dos advogados. Startups apelidadas legaltechs configuram a Justiça do futuro.

O QUE O BLOCKCHAIN DEFINIRÁ SOBRE VOCÊ

Muitos já estão familiarizados com criptomoedas como o bitcoin. São em menor número os que sabem que o blockchain, a tecnologia que sustenta a maioria das criptomoedas, tem também potencial para transformar o exercício do Direito. Um blockchain é uma base de dados compartilhada e ultrassegura. Graças a essa tecnologia, pela primeira vez um usuário de internet pode transferir propriedade a outro usuário, de modo que a transferência seja segura, que todos saibam o que ocorreu e que ninguém possa negar sua legitimidade, sem a necessidade de um intermediário.

Gonzalo Blousson é um dos pioneiros de blockchain e legaltechs na América do Sul. É cofundador e CEO da Signatura, de Buenos Aires, uma startup que usa blockchain para a certificação de documentos. A Signatura trabalha para desenvolver e implementar certificação digital em documentos e processos, informa uma placa em um de seus escritórios, situado no Espaço Bitcoin de Buenos Aires, coworking que abriga empresas desse segmento. “Pela primeira vez na história, a tecnologia de blockchain nos dá a possibilidade de garantir a autoria, a data e a imutabilidade de um documento digital. A informação é transparente e auditável por qualquer pessoa, sem a necessidade de terceiros de confiança que garantam a integridade. Nossas aplicações vão desde a simples assinatura de um contrato ou à emissão de diplomas ou certificados de estudos digitais e impossíveis de falsificar, até soluções para a transparência de licitações públicas”, diz Blousson.

Uma das principais funções de um sistema legal é o registro de propriedade. Quando essa função falha, ocorrem problemas graves. Em Honduras, funcionários do registro de terras alteravam documentos públicos para se apropriar ilegalmente de terrenos. Isso levou o governo a desenvolver uma prova piloto de registro de terras com blockchain. O objetivo era que ninguém pudesse manipular a base de dados. Na ex-república soviética da Geórgia também se desenvolvem iniciativas do tipo.

O contrato se firmou mesmo na data indicada? O envelope com proposta para a licitação foi entregue no prazo estabelecido? A pessoa obteve mesmo o diploma que menciona no currículo? Essas são algumas perguntas que podem ser respondidas com blockchain. Papéis sofrem risco de roubo ou deterioração. Arquivos digitais podem ser alterados. O blockchain, como uma base de dados extremamente difícil de hackear, permite a criação de registros de propriedade seguros.

Segundo o economista peruano Hernando de Soto, no mundo há mais de US$ 10 trilhões de ativos em capital morto. Seus donos, por deficiência nos sistemas estatais, não detêm registros. Pensa-se usualmente em casas onde vivem famílias sem título oficial de propriedade. Mas podemos pensar até numa bicicleta, um tipo de ativo que normalmente não se registra. A criação de uma base de dados compartilhada que inclua esses ativos permitirá a seus donos usá-los como garantia para obter crédito.

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A CHEGADA DOS CONTRATOS INTELIGENTES

Em 1996, no artigo Contratos Inteligentes, o criptógrafo Nick Szabo predizia que a internet mudaria para sempre a natureza dos sistemas legais. A Justiça do futuro, dizia, estaria baseada em uma tecnologia chamada contratos inteligentes.

Os contratos legais com que habitualmente trabalham os advogados estão escritos em linguagem frequentemente ambígua e sujeita a interpretações. A execução, além disso, depende do sistema judiciário, lento e manipulável. O dinheiro compra os melhores advogados e mais possibilidades de ganhar um julgamento. Um contrato inteligente é um acordo escrito em código de software. Como linguagem de programação, é claro e objetivo. O contrato se executa de maneira automática quando se cumprem as condições acordadas. Ambas as partes podem ter certeza quase total de que o acordo se cumprirá tal como foi combinado. E tudo ocorre em uma rede descentralizada de computadores. Não há nada que as partes possam fazer para evitar o cumprimento do contrato. Não adiantará nada hackear computadores ou subornar um juiz.

Imaginemos que Alice compre um automóvel com um crédito bancário, mas deixe de pagar suas prestações. Uma manhã, introduz sua chave digital no veículo — e a porta não abre. Foi bloqueada por falta de cumprimento do contrato. Minutos depois, chega o funcionário do banco com outra chave digital. Abre a porta, liga o motor e parte com o veículo. O contrato inteligente bloqueou de maneira automática o uso do automóvel por parte de Alice, por causa da falta de cumprimento do contrato. O banco recupera o veículo sem perder tempo com dinheiro nem advogados.

Szabo propôs os contratos inteligentes nos anos 90. Mas durante muito tempo, a proposta ficou só na ideia. Até que em 2014 um jovem russo-canadense de 19 anos chamado Vitalik Buterin, usando blockchain, lançou a Ethereum. Trata-se de uma rede que mantém registro compartilhado com a rede bitcoin. Mas tem linguagem de programação mais sofisticada, que permite a gravação de contratos inteligentes. Os contratos inteligentes prometem automatizar muitas das ações que historicamente se fizeram por meio de sistemas legais, reduzindo seus custos e aumentando sua velocidade e segurança.

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TECNOLOGIA NOVA, FECHADURAS VELHAS 

Os contratos inteligentes podem transformar o funcionamento de indústrias que requerem transparência para transferir pagamentos e propriedade de ativos, ou que precisam compartilhar informação sensível. Entre elas estão:

Seguros_ Imagine que um usuário tem um seguro de viagem escrito em um contrato inteligente. A decolagem do avião demora mais que o permitido. Graças ao contrato, realiza-se um pagamento automático da companhia aérea para o passageiro, sem necessidade de ele reclamar do atraso. A Capgemini Consulting estima que custos de processamento de seguros poderiam cair 12,5% com contratos inteligentes.

Hipotecas_ O processo de concessão de um crédito hipotecário é demorado e complicado. Os contratos inteligentes podem melhorar a gestão da documentação, com potencial de cortar muito os custos para os bancos. Graças a contratos inteligentes, os tomadores de créditos hipotecários poderiam se beneficiar de cortes de custo de cerca de 22%, segundo a Capgemini.

Reconhecimento de clientes_ Em novembro de 2017, os bancos UBS, Barclays, Credit Suisse, Thomson Reuters, KBC e SIX lançaram um projeto para usar contratos inteligentes a fim de melhorar a qualidade das referências de clientes. A iniciativa permite cumprir melhor os requerimentos regulatórios que os bancos enfrentam, para prevenir lavagem de dinheiro.

Ainda que o segmento esteja numa fase inicial, aos poucos vão surgindo mais legaltechs para aplicar contratos inteligentes em diferentes setores da economia. Um dos principais desafios está no ambiente regulatório — em particular, no reconhecimento legal desses contratos.
“Hoje, contamos com projetos de implementação de contratos inteligentes com validade legal, como OpenLaw, da ConsenSys (Estados Unidos), Accord Project (EUA e Reino Unido), Agrello (Estônia) e dezenas de pequenos empreendimentos pelo mundo”, afirma o advogado especializado em novas tecnologias Albi Rodriguez Jaramillo, cofundador da comunidade LegalBlock, de advogados especialistas em blockchain. “A isso, somam-se trabalhos que vêm se desenvolvendo nos últimos anos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e em outras universidades.”

Um segundo desafio é desenvolver a infraestrutura necessária para que os contratos inteligentes possam ser executados. Isso inclui a criação de fechaduras inteligentes que respondam às ordens desses contratos. Elas é que farão a hipotética devedora Alice não conseguir abrir o carro por ter deixado de pagar as prestações. No futuro também será possível que uma casa alugada no Airbnb abra as portas de maneira automática quando ocorre o pagamento. A empresa Slock.it desenvolve uma rede universal de compartilhamento (Universal Sharing Network) na qual, espera-se, vão interagir carros, casas e outros ativos da economia compartilhada. Será uma peça fundamental para o desenvolvimento dos contratos inteligentes na nova economia.

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O EFEITO BLOCKCHAIN PARA MÚSICOS 

Há alguns anos a cantora britânica Imogen Heap vem impulsionando o blockchain como alternativa para colocar nas mãos dos artistas o poder na indústria da música. Em 2016, ela lançou sua canção Tiny Human na plataforma descentralizada Ujo Music, que permite que músicos faturem com seu trabalho sem precisar de intermediários.

Historicamente, as gravadoras foram encarregadas de contabilizar as vendas e pagar os músicos. Com o advento da internet, essa intermediação passou para grandes plataformas, como YouTube e Spotify, que são quase monopólios globais. Elas faturam e repassam aos artistas uma pequena parte.

A Ujo Music funciona de forma diferente. Cada canção se atrela a um ou mais contratos inteligentes. No caso de Tiny Human, escutá-la por streaming custava 0,6 centavo de dólar. Baixá-la custava 60 centavos. Os contratos inteligentes transferem automaticamente o dinheiro para o músico, a cada vez que alguém compra uma canção. Não há um intermediário que possa manipular a informação para ficar com parte maior do faturamento. Como tudo está registrado em blockchain, cria-se uma base de dados pública sobre as vendas que todos podem verificar. Os músicos podem saber exatamente quantas vezes a música foi ouvida e quanto rendeu, informação hoje monopolizada pelas plataformas.

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PELO FIM DO LITÍGIO IMPRODUTIVO

Por que nos limitarmos à indústria da música? O mesmo modelo pode funcionar em todos os setores. Uma equipe de designers está colaborando em um produto. Com contratos inteligentes, cada um receberá um pagamento automático a cada vez que o produto gere receita. Imaginemos que Sandra, empreendedora em São Paulo, contrata Miguel, programador na Guatemala, para que ele crie um site. Paga parte do trabalho antecipadamente. Semanas depois, Miguel entrega o site, mas Sandra não fica satisfeita — o site não tem todas as funcionalidades combinadas. Miguel não se importa. “Fiz o que pediu”, responde. Sandra está frustrada. Mas tem sentido contratar um advogado na Guatemala para entrar numa disputa de baixo valor?

Em meio a um rápido processo de globalização e digitalização, uma parcela cada vez maior da economia mundial se move por meio de freelancers que oferecem serviços a clientes em qualquer lugar do mundo. Estima-se que entre 3% e 5% das transações de comércio eletrônico terminem em disputas judiciais. O blockchain pode agilizar a resolução desses conflitos.

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A ERA DO ADVOGADO CHATBOT

Historicamente, a carreira de advogado começava com um trabalho interno realizando tarefas de busca de informação, revisão de antecedentes e assistência a colegas mais experientes na preparação de casos. Atualmente, muitas dessas tarefas começam a ser automatizadas por legaltechs. Usam I.A. com capacidade de simular a tomada de decisão humana.

O uso de I.A. em Direito foi proposto pela primeira vez pelo professor Hugh Lawford, da Universidade de Queens, nos Estados Unidos, que desenvolveu a base de dados Quic/Law nos anos 60. Percorremos um longo caminho desde aquele momento. A IBM criou o assistente legal Ross, baseado na plataforma de I.A. Watson. Ross permite realizar investigações ultrarrápidas numa base de dados com acesso a uma enorme quantidade de casos, evidências, regulação e legislação. Outra ferramenta é a Coin, usada pelo banco JPMorgan. Ela é capaz de revisar em poucos segundos uma quantidade de documentos que tomaria cerca de 360 mil horas de um advogado humano. Outras companhias, como a Premonition, oferecem serviços para prever as probabilidades de resultado de um caso em julgamento. Qual é a duração típica de um caso com essas características? Qual parcela de casos ganha o acusado? E a defesa?

Empresas de todos os portes pedem custos jurídicos menores. O serviço prestado por grandes escritórios de advocacia, com equipes numerosas e tarifas por hora, já não parece tão relevante num mundo de legaltechs e experimentação contínua. Por isso, alguns escritórios tradicionais começam a automatizar processos e reduzir custos, para seguir competitivos diante do avanço de startups.

O escritório de advocacia multinacional Dentons lançou o NextLaw Labs, uma incubadora de legaltechs. Outra empresa multinacional, Allen & Overy, em colaboração com a Deloitte, desenvolveu a MarginMatrix, que codifica leis financeiras de diferentes jurisdições e automatiza a redação de contratos. O tempo de codificar um documento cai de três horas para apenas três minutos. “Os advogados vão tomar decisões e desenhar processos para que o cliente viva uma boa experiência quando entrar em contato. Também vão tomar decisões baseadas em dados, em vez de confiar na intuição ou na experiência”, diz Juan Manuel Haddad, coordenador, na Telefônica, da área de Transformação Digital no Setor Público e na Justiça. “É necessário que os dados se tornem onipresentes e facilmente acessíveis, e que apoiem tomadas de decisão baseadas em informação em toda a empresa.”

Todos os avanços da I.A. convergem para um advogado do futuro na forma de chatbot. Joshua Browder, estudante na Universidade de Stanford, criou o primeiro da espécie. A experiência é como bater papo com uma pessoa por mensagem. O cliente pode escrever: “Recebi uma multa de trânsito injustamente”. O chatbot gera uma série de perguntas que terminam com um formulário pronto para imprimir e apresentar a reclamação. O chatbot foi usado para avaliar 375 mil multas de trânsito em dois anos e está se ampliando para novas categorias.

Do ponto de vista do cliente, grande parte das nossas interações será com chatbots, como os que já se usam nos serviços de atendimento ao consumidor. Eles nos guiarão nas primeiras etapas do processo legal. Só veremos um advogado humano nos casos mais complexos. No mundo do futuro, a vantagem competitiva do advogado humano está nas atividades que não são facilmente replicáveis por I.A. — empatia, intuição, criatividade, capacidade de comunicação e senso comum. “O advogado do futuro tem de ter uma atitude de aprendizado contínuo, curiosidade, adaptabilidade e conhecimento profundo das novas tecnologias”, comenta Haddad.

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O FUTURO DE ESCRIVÃOS E ADVOGADOS

“A Justiça é muito rápida no futuro, desde que aboliram os advogados”, informava-nos o personagem Doc Emmett Brown em De Volta para o Futuro 2. Grupos humanos em todas as épocas desenvolveram sistemas legais. Fizeram isso de acordo com suas tecnologias e crenças. Os gregos usavam tribunais populares. Na Idade Média, as acusadas de bruxaria eram acorrentadas e atiradas a um rio. Se flutuassem, eram consideradas culpadas. Os sistemas legais de nossos dias são criação dos séculos 17 e 18, época da consolidação dos Estados nacionais. Papéis, livros e atas de procedimento são tecnologias daquele momento. Nascia a figura do advogado como a conhecemos hoje. Desde então, mudou todo o resto — as sociedades, as crenças e a natureza das disputas, além da tecnologia.

Numa economia global e digital, os sistemas de Justiça analógicos começam a ficar obsoletos. Assim como a revolução do e-commerce transformou o mundo do consumo, a internet dos acordos vai revolucionar as cadeias de suprimentos, finanças, imóveis, propriedade intelectual e emprego. O blockchain e a I.A. vão transformar as leis. Richard Susskind, um dos grandes peritos em Direito e novas tecnologias, não acredita que o impacto digital sobre o Direito seja tão grande como o da Amazon sobre as livrarias. Ele crê que haverá mudanças incrementais e localizadas. A resistência dos advogados e dos sistemas jurídicos tornará o processo lento. Mesmo assim, em algum momento, a mudança chegará. Haddad, da Telefônica, adverte: “Os advogados têm de abraçar definitivamente a ruptura”.

Como todas as profissões na era digital, os advogados terão de se reinventar. No futuro, é provável que nossos filhos vejam o sistema legal de hoje como nós vemos os sistemas medievais. Assim como a internet democratizou o acesso a muitos conteúdos e as criptomoedas democratizam o acesso a serviços financeiros, a nova onda da revolução digital tem o potencial de democratizar o acesso à Justiça.

* Federico Ast é Ph.D. em gestão, professor de blockchain, economista, filósofo, fundador e CEO da Kleros, plataforma de arbitragem que usa blockchain para resolver disputas

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